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Mieloma Múltiplo: Uma Abordagem Laboratorial no Diagnóstico

27 Outubro 2022

O mieloma múltiplo é uma doença maligna que afeta a parte esponjosa do osso, e onde se encontram um número de plasmócitos superior ao normal. No indivíduo normal, os plasmócitos são responsáveis pela produção de anticorpos envolvidos na defesa do organismo.

No doente com mieloma múltiplo, acumulam-se anticorpos não-funcionais (proteína M, ou monoclonal) que podem agredir o organismo, em particular o rim.

O número aumentado de plasmócitos também pode ter consequências nefastas diretas, uma vez que ao ocuparem espaço na medula óssea, os plasmócitos a impedem de produzir células sanguíneas na quantidade habitual.

Prevalência e fatores de risco do mieloma múltiplo

O mieloma múltiplo é o segundo cancro hematológico mais frequente; ainda assim é relativamente raro, com cerca de 800 casos diagnosticados anualmente em Portugal.

O mieloma múltiplo é mais prevalente em:

  • Homens;
  • Indivíduos com mais de 60 anos;
  • População melanodérmica;
  • Pessoas com história familiar de discrasias dos plasmócitos.

O mieloma múltiplo faz parte de um espectro de doenças em cuja origem está uma mutação genética que aumenta a longevidade dos plasmócitos e confere-lhes a capacidade de se multiplicarem, resultando na sua proliferação. Esta condição pré-maligna designa-se de gamapatia monoclonal de significado indeterminado (GMUS), é assintomática e relativamente frequente, detetando-se em 3% da população com mais de 50 anos. Menos de 1% dos GMUS acabam por evoluir para mieloma múltiplo, dependendo de diversos fatores como as diferentes alterações genéticas em causa e as proteínas M produzidas. Considera-se que o doente tem mieloma múltiplo quando apresenta:

  • Pelo menos 10% de plasmócitos na medula óssea, ou evidência de plasmocitoma em biópsia;
  • Lesão de órgão alvo, seja ela: anemia, lesão renal, lesões ósseas ou hipercalcémia.

Quando a primeira condição está presente, mas não a segunda a doença classifica-se de mieloma múltiplo indolente. Este estado em particular está associado a um risco de progressão maior nos primeiros 5 anos (cerca de 10% evoluem para doença sintomática), pelo que tem uma vigilância mais apertada durante este período. Posteriormente, o risco continua um pouco superior ao do GMUS, sendo que 3 em cada 4 doentes são diagnosticados com mieloma múltiplo nos primeiros 15 anos.

A classificação da doença entre GMUS, mieloma indolente e mieloma múltiplo tem a máxima importância uma vez que só no último existe indicação formal para iniciar tratamento.

Como se manifesta o mieloma múltiplo?

O mieloma múltiplo pode apresentar-se com:

  • A manifestação mais frequente é dor lombar (70%): o mieloma pode causar destruição óssea a um ritmo mais acelerado, aumentando mesmo o risco de fratura;
  • Infeções frequentes: a produção desenfreada de anticorpos não-funcionais pode prejudicar a produção de anticorpos protetores para doenças infeciosas, deixando o corpo mais vulnerável;
  • Cansaço: por se expandir na medula óssea, pode condicionar a produção de glóbulos vermelho, traduzindo-se numa sensação de falta de energia e anemia;
  • Equimoses, ou “nódoas negras”: pelo mesmo motivo, a produção de plaquetas pode também ser insuficiente;
  • Sede, aumento da frequência urinária, náuseas, obstipação: são manifestações de hipercalcémia, que resulta da destruição óssea e está associado a doença mais grave.

Estes mesmos sintomas podem ser causados por outras patologias, pelo que deve confiar no seu médico assistente para recolher informação relevante e avaliar as várias hipóteses diagnósticas enquadráveis no seu quadro em particular.

Vale a pena ressalvar que o mieloma também pode ser totalmente assintomático. Estima-se que 30% dos doentes sejam diagnosticados fortuitamente no contexto de problemas não relacionados.

Como se diagnostica o mieloma múltiplo?

Pela sua natureza, o mieloma múltiplo requer a utilização quer de testes laboratoriais quer de exames de imagem.

Um doente com mieloma múltiplo pode ter as seguintes alterações nas análises de rotina:

  • Hipercalcémia: cálcio sérico >2,75 mmol/L ou >11mg/dL;
  • Lesão renal: creatinina sérica >2 mg/dL;
  • Anemia: <10 g/dL;

Na radiografia, podem encontrar-se lesões ósseas líticas, que resultam da alteração do equilíbrio entre a destruição e a renovação óssea. Este estado de fragilidade óssea pode culminar em fratura óssea.

Se as suas análises apresentam uma destas alterações, deve esclarecer com o seu médico assistente se são resultado de outra patologia já conhecida ou se podem corresponder a um mieloma múltiplo.

O primeiro passo a dar na suspeita de mieloma múltiplo, é confirmar a presença da proteína M, que se deteta através de uma electroforese de proteínas séricas. Este exame identifica e quantifica a proteína, se estiver presente no sangue. Numa pequena percentagem (3%), os mielomas podem ser não-secretores, e nestes não se encontra a proteína M na electroforese.

A electroforese de proteínas séricas pode ser complementada por:

  • Quantificação das imunoglobulinas: pode ser útil na monitorização da doença, e permite detetar eventuais imunodeficiências (como a imunoparésia secundária ao mieloma múltiplo);
  • Doseamento de cadeias leves livres (FLC,do inglês para free light chain): que melhora a sensibilidade do estudo para detetar, por exemplo, mielomas de cadeias leves;
  • Imunofixação/imunotipagem: para além de detetar algumas proteínas monoclonais pequenas, invisíveis na electroforese, este teste permite esclarecer qual/quais são os isotipos envolvidos, o que permite avaliar o risco de progressão, se for um GMUS ou o prognóstico, tratando-se de mieloma múltiplo;
  • Estudo da urina (por electroforese, imunofixação ou doseamento de cadeias leves): melhora a sensibilidade diagnóstica do painel de testes, especialmente no mieloma de cadeias leves.

Estes testes não implicam nenhuma preparação especial do utente, não requerem jejum pelo que pode realizar a sua colheita a qualquer hora do dia em qualquer uma das nossas unidades.

A confirmação da presença de proteína monoclonal associada a lesão de órgão alvo torna imperativo o estudo da medula óssea através de uma biópsia ou aspirado medular. Este procedimento é geralmente realizado por um médico especialista em Hematologia. Depois da confirmação do diagnóstico serão realizados outros testes específicos, incluindo pesquisa de variações genéticas que podem ter implicações a nível prognóstico e terapêutico.

Que tratamentos existem?

Das condições mencionadas, só o mieloma múltiplo é que tem critérios para realizar tratamento, uma vez que o GMUS e o mieloma indolente são assintomáticos e podem nunca vir a causar danos no organismo.

O tratamento de mieloma múltiplo assenta sobre uma combinação de medicamentos, como corticoesteróides, inibidores do proteasoma, imunomoduladores e anticorpos monoclonais. A decisão sobre o protocolo mais indicado para cada doente depende entre outros fatores da sua idade e comorbilidades. Doentes mais jovens toleram melhor quimioterapia de alta dose, e podem ser submetidos a um ou mais transplantes autólogos de medula óssea. Para doentes com maior fragilidade, os tratamentos são adaptados para melhorar a sua tolerância.

Atualmente o mieloma múltiplo não tem cura. A recidiva da doença é frequente, e o tratamento pode ser a mesma combinação ou outra diferente. Há um número crescente de opções terapêuticas que melhoram a sobrevivência dos doentes com mieloma múltiplo.

O seguimento do doente com mieloma múltiplo é feito pelo hematologista e a equipa de enfermagem, e estes são os mais qualificados para responder a todas as dúvidas que podem surgir ao longo do seu percurso. Diversas associações nacionais e internacionais investem no estudo e divulgação do mieloma múltiplo, e podem apoiá-lo com conselhos e testemunhos para o ajudar a ultrapassar as piores fases da doença.

Os critérios de classificação de mieloma múltiplo apresentados baseiam-se na classificação do International Myeloma Working Group Diagnostic Criteria for Multiple Myeloma and Related Plasma Cell Disorders (2014). Estes critérios foram simplificados para melhor compreensão pelo leitor. Se é profissional de saúde e deseja consultar os critérios de forma mais detalhada, a última revisão da classificação pode ser consultada no artigo:

Multiple Myeloma: 2016 update on Diagnosis, Risk-stratification and Management (S. Vincent Rajkumar).

Sites de interesse:
https://www.apcl.pt/pt/doencas-do-sangue/mieloma-multiplo
https://mieloma.pt/missao
https://themmrf.org/

Com a especial colaboração de:

Dra. Ângela Maresch – Patologista Clínica, Laboratório de Imunologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC)