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O jejum é obrigatório para todas as análises?

22 Dezembro 2022

A fase pré-analítica é a principal fonte de erros nos procedimentos de testes laboratoriais, por isso, a colheita de amostras para este fim é uma atividade pré-analítica crucial. No entanto, existem fatores que ocorrem ainda antes desta etapa que podem prejudicar a qualidade da amostra e os resultados dos testes, sendo um destes fatores o estado basal de cada indivíduo no momento da colheita.

Idealmente a colheita de amostras para análise seria o mais padronizada possível, ou seja, a colheita seria sempre feita nas mesmas condições para minimizar ao máximo qualquer interferência ou alteração provocada por efeitos externos aos resultados.

Um dos fatores de padronização mais comummente utilizado é o jejum, embora a sua importância e o seu impacto não sejam os mesmos em todas as análises, pelo que nem todas as colheitas têm de ser obrigatoriamente efetuadas em jejum. 

Dentro da comunidade científica não existe também consenso na definição de “jejum” no que respeita a colheita de amostras para análise laboratorial, uma vez que o termo jejum, pode implicar não apenas a duração do período de jejum, mas também em restrições quanto ao tabagismo, consumo de álcool, consumo de café/chá e a prática de atividade física.

No artigo deste mês vai poder tirar todas as suas dúvidas em relação ao jejum. 

Por que motivo se fazem análises clínicas em jejum?

Em resposta à ingestão de alimentos, ocorrem alterações metabólicas e hormonais no nosso organismo, principalmente devido à absorção de líquidos (água e/ou álcool), lípidos, proteínas, carboidratos e outros constituintes dos alimentos. O período imediatamente após a refeição é chamado “estado pós-prandial”, caracterizado pelo início do stresse oxidativo, inflamação e algum grau disfunção endotelial. Atualmente, devido aos hábitos alimentares e ao fácil acesso aos alimentos, a maioria dos indivíduos dos países desenvolvidos passa a maior parte do dia em estado pós-prandial. 

Encontram-se amplamente estudadas e documentadas na literatura científica, alterações de numerosos marcadores bioquímicos e hematológicos em resposta ao estado pós-prandial. 

As alterações bioquímicas mais pronunciadas e clinicamente significativas são observadas até 4 horas após uma refeição para:

  • Triglicerídeos 
  • Glicose
  • Albumina
  • Alanina aminotransferase (ALT)
  • Aspartato aminotransferase (AST)
  • Cálcio
  • Sódio
  • Magnésio
  • Potássio
  • Proteína C-reativa (PCR)
  • Ácido úrico 
  • Bilirrubina total

A nível hematológico, a contagem de linfócitos mostra reduções significativas cerca de 1 a 2 horas após uma refeição. 

Uma vez que existem alterações bem documentadas a nível da literatura para indivíduos em estado pós-prandial e para facilitar a interpretação dos resultados e a implementação de valores de referência, dado que os padrões de colheita de amostras para análise laboratorial era estabelecida por cada laboratório ou sociedade científica nacional, a Federação Europeia de Química Clínica e de Medicina Laboratorial (EFLM) em 2014 emitiu um documento com a finalidade de padronizar conceitos no que diz respeito ao jejum. 

De acordo com a recomendação publicada pela EFLM, a colheita de sangue para todos os exames laboratoriais deve ser feita pela manhã (entre 7 e 9 horas da manhã) em jejum, 12 horas após a última refeição. O consumo de água é permitido durante o período de jejum, mas os pacientes devem abster-se do consumo de álcool 24 horas antes da sua colheita. Pela manhã, antes da colheita de sangue, os pacientes não devem ingerir bebidas que contenham cafeína (café, bebidas energéticas ou chá). Fumar, e mastigar pastilhas elásticas também é fortemente desaconselhado na manhã antes da colheita. A medicação habitual que realiza no período da manhã deve ser adiada, e tomada imediatamente após o momento da colheita, a menos que esta seja vital para o paciente ou que tenha indicação médica para manter a toma da sua medicação.

Sendo assim, todas as análises devem ser obrigatoriamente realizadas em jejum?

A resposta simplificada é não.

A EFLM reconhece, no mesmo documento em que padroniza a definição de jejum, que a exigência de jejum pode apresentar certas dificuldades logísticas e que é aceitável realizar a colheita de sangue durante o dia para indivíduos que não estão em jejum em casos de emergência ou para parâmetros para os quais há evidência de que o jejum não é necessário, nem afeta os resultados analíticos.

Existem também certos analitos –  substâncias ou componentes químicos de uma amostra, que por exibirem uma variação circadiana, podem exigir múltiplas colheitas diárias (ex: cortisol) ou a necessidade de realizar múltiplas colheitas para provas de tolerância (ex: glicose, lactose).

Outros fatores, como atividade física regular e/ou recente, ingestão de certos tipos de alimentos, medicamentos de prescrição ou de venda livre, suplementos alimentares e preparações à base de ervas, entre outros, são conhecidos por afetar a concentração de certos analitos. Por isso, deve informar sempre o seu médico da existência de qualquer um destes fatores e seguir as recomendações específicas do médico solicitante em relação à sua colheita ou confirmar com o seu laboratório se alguma das análises que vai realizar necessita de alguma preparação específica.

Mais recentemente, em 2016, e após vários estudos com um elevado número de indivíduos, a EFLM em conjunto com a Sociedade Europeia de Aterosclerose, emitiu novas recomendações em relação à colheita do perfil lipídico fora do período de jejum. Um dos testes que, até ao momento e destas recomendações, era dos mais consensuais em relação à necessidade de jejum para a sua realização indica o seguinte:

“O jejum não é necessário rotineiramente para avaliar o perfil lipídico plasmático.

Apenas nos casos em que a concentração plasmática de triglicerídeos fora do período de jejum for superior a 440 mg/dL, deve ser considerada a repetição do perfil lipídico em jejum.”

A razão para a emissão destas novas recomendações é devida à quantidade de refeições realizadas ao longo do dia pela maioria dos indivíduos, que nos leva a entrar num estado pós-prandial predominante, muitas vezes durante um período de 24 horas, e a não ter oportunidade de entrar em jejum. 

No entanto, na prática clínica, o perfil lipídico é convencionalmente medido em amostras após ser realizado um jejum de pelo menos 8 horas, portanto pode não refletir as concentrações médias diárias de lípidos e lipoproteínas, nem o risco associado de doença cardiovascular.

A vantagem das medições lipídicas sem jejum, em vez de em jejum, é a simplificação da colheita de sangue para os utentes, laboratórios, e médicos assistentes. Também existe uma melhor adesão dos utentes à realização das suas análises, uma vez que podem realizar a colheita quando lhes for mais conveniente, não sendo necessário voltar ao laboratório para uma segunda colheita, no caso não se encontrar em jejum no momento da sua primeira visita.  

Além disso, permite aos laboratórios distribuir as colheitas ao longo do seu período de funcionamento ao invés de concentrar as suas colheitas apenas no período da manhã.

O jejum pode ser também uma barreira à realização de análises, é impopular e pouco prático entre as crianças e geralmente inadequado por longos períodos para pacientes com diabetes. Testes que não requerem jejum também são usados ​​para avaliar outros distúrbios metabólicos, como a hemoglobina A1c na avaliação de diabetes mellitus

Em suma, a realização de análises em jejum é um tema que está constantemente em estudo e em permanente atualização, com  novas recomendações a serem emitidas pelas sociedades científicas regularmente. 

A necessidade de fazer a sua colheita em jejum ou de qualquer outra recomendação específica a seguir, antes de realizar as suas análises, deve ser comunicada pelo seu médico solicitante. Em caso de dúvida, pode sempre esclarecer qualquer questão ou confirmar com o seu laboratório as recomendações de colheita específicas para as análises que vai realizar.

Qual é o tempo de jejum que devo respeitar?

Se tem indicação de que a sua colheita deve ser realizada em jejum as recomendações internacionais indicam que deve ser respeitado um período de 12 horas após a última refeição.

No entanto, a maioria dos estudos indica que cerca de 4 a 6 horas após a última refeição, a maioria dos parâmetros analíticos não são afetados significativamente e não existe impacto para a decisão clínica. No entanto, este período mais curto pode não ser aplicável se a última refeição consumida for de alto teor em gorduras, pois causa elevações significativas dos valores de triglicerídeos e torna as amostras lipémicas, o que pode causar interferência no resultado de diversos analitos. 

Se a sua amostra for lipémica, será contactado pelo laboratório para repetir a sua colheita respeitando o período de 12 horas de jejum.

O que devo e o que não devo fazer durante o jejum? 

Posso beber água quando vou fazer análises? 

O consumo de água é geralmente permitido durante o período de jejum. Não existem recomendações em relação à quantidade de água que pode beber no dia anterior à sua colheita. No entanto, uma recomendação prática a seguir é a de manter o volume de ingestão habitual de água.

Deve também evitar a ingestão de bebidas que contenham cafeína (café, bebidas energéticas ou chá), principalmente com açúcar adicionado. 

Posso tomar a minha medicação habitual? 

Se tem indicação de que a sua colheita deve ser realizada em jejum, as recomendações internacionais indicam que a medicação habitual que realiza no período da manhã deve ser adiada, e tomada imediatamente após o momento da colheita, a menos que esta seja vital ou que tenha indicação médica para manter a toma da sua medicação.

No entanto, o facto de existir a possibilidade de alguns medicamentos alterarem os resultados das suas análises não significa que deva suspender a medicação antes da sua colheita, especialmente os medicamentos prescritos pelo seu médico.

O mais correto é partilhar a lista da sua medicação e suplementos com o seu médico para que ele possa levá-los em consideração na altura de interpretar os seus resultados. Pode partilhar também esta informação com o seu laboratório para poder ter em conta essa informação ao avaliar os seus resultados. 

Se não tiver certeza se deve ou não parar de tomar alguma medicação antes dos seus testes laboratoriais, fale com o seu médico assistente. 

Existem também análises para monitorização terapêutica de medicamentos em que a colheita dependerá do medicamento e da finalidade do teste (otimização da dosagem, monitorização da adesão, efeitos adversos, intoxicação medicamentosa, etc.). Nestes casos, as recomendações específicas para o momento exato da colheita de sangue devem ser emitidas pelo médico solicitante.

Posso fazer análises enquanto estou menstruada? 

Regra geral, pode efetuar qualquer colheita de sangue para análises durante a menstruação sem qualquer problema. 

Caso seja necessário realizar uma colheita de urina ou de amostras genitais, pode adiar se possível a sua colheita, ou caso contrário informar os profissionais do laboratório no momento da colheita para que essa informação seja valorizada no momento da interpretação dos seus resultados.

Posso fumar antes de fazer análises? 

Fumar, e mastigar pastilhas elásticas é fortemente desaconselhado na manhã antes da colheita.

Geralmente, se os seus exames laboratoriais requerem jejum é recomendável que evite fumar também antes da sua colheita.

O que fazer quando os exames têm tempo de jejum diferentes?

Se existirem recomendações de tempos de jejum diferentes para as suas análises, deve-se respeitar o tempo de jejum mais elevado antes da sua colheita.

Posso consumir bebidas alcoólicas antes de um exame?

As recomendações internacionais indicam que os utentes devem abster-se do consumo de álcool pelo menos 24 horas antes da sua colheita.

Posso praticar exercício antes de fazer análises?

Por norma, momentos de atividade física intensa (que exceda o nível de atividade diária normal) devem ser evitados 24 horas antes da sua colheita de sangue.

Se alguns dos fatores acima forem identificados e a colheita de sangue não puder ser adiada, deve informar a equipa do laboratório, sempre que apropriado, para que seja possível documentar todas as condições pré-analíticas relevantes e permitir uma correta interpretação dos resultados dos seus testes.

Fontes: 

A.M. Simundic et al. / Clinica Chimica Acta 432 (2014) 33–37

Clin Chem Lab Med 2018; 56(12): 2015–2038

European Heart Journal (2016) 37, 1944–1958 doi:10.1093/eurheartj/ehw152